quarta-feira, 23 de fevereiro de 2011

Urgente agora

De vez em quando me pego pensando no futuro. Penso em como vai ser e se vou ser feliz. E o que mais me deixa apreensivo é não saber o que vai ser. É tão difícil viver com a dúvida, não? Mas pior seria viver com a certeza, saber onde tudo vai acabar e por onde tudo vai passar. O momento é oportuno para uma questão levantada por Paulinho Moska, quando indaga: "Então me diz: qual é a graça de já saber o fim da estrada quando se parte rumo ao nada?". Pois é, mais uma contradição.

Me contradizer é algo que vem se tornando habitual no meu dia-a-dia. Penso, digo, sinto, volto atrás, pulo à frente e volto a pensar. Mas isso também é bom, porque acabo não me prendendo a uma única coisa, por mais racional que seja. Na verdade, prefiro ter a certeza do emocional, daquilo que não tem explicação, pois nunca será uma certeza. É o simples ritual de praticar a certeza como maquiagem. Penso ter a certeza para me sentir mais confiante, mas, no fundo, sei que não tenho certeza de nada. Nem do rumo que o meu dia tomará. Enfim, é complicado de entender. Confesso que é mais fácil colocar em prática.

Voltando ao meu atual futuro, não sei o que me espera quando seguir em frente. Posso tomar a liberdade de dizer que sinto um pouco de medo. Acredito que isso seja natural, afinal, não podemos viver sem nossos medos. Eles nos dão forma, nos preenchem desde a sensibilidade nos dedos dos pés, até o súbito frio que toma conta de nossas espinhas. Necessitamos de algo para temer. A vida não pode ser construída somente de sonhos, mas de pesadelos também. Os medos surgem como desafios. Alguns mais fáceis, outros mais difíceis. E o mais interessante é saber que sempre vamos ter do que sentir medo, do que correr. Não precisamos enfrentar tudo que vem ao nosso encontro, fugir também faz sentido às vezes.

De qualquer forma, a vida se apresenta para nós. Este é um acontecimento do qual não podemos escapar. Talvez o único deles. Mas afinal, importa o que vai acontecer? Importa agora? A única coisa que importa agora é o agora.

domingo, 20 de fevereiro de 2011

Pingos de luz

Ao mesmo tempo em que a chuva pintava as ruas em rios, ele olhava a violência do vento carregando as águas no mais absoluto silêncio. Olhava admirado o quão impactante eram aquelas águas caindo ao lado da sua janela. E por um longo tempo, se colocava a imaginar o verdadeiro tamanho daquela grandeza. Chegou até a cometer a loucura de se comparar à voracidade do vento que invadia os seus pensamentos. Mas, como sempre, tratou de contradizer o que pensava. Será que nem uma pontinha de insanidade seria bem-vinda? Será que nem um montinho de vidas novas seria um caminho? Será que seria certo ter a certeza de um sereno puramente vazio?

A chuva que demorava a passar, colaborava para o trânsito de ideias na sua cabeça. Às vezes em mão única, outras em mão dupla. O que mais lhe chamava a atenção em todas aquelas gotas caindo, era justamente o grande mar que se formava na frente dos seus olhos. Sua visão estava tão embaçada, que ele já não era capaz de distinguir profundas lágrimas de simples poças. Afinal, todos sempre souberam que ele era um grande poço de lágrimas. Isso o tornava bastante sensível. Ele já não conseguia mais ser machão. Ainda bem, porque, finalmente, ele entendeu que ser macho é bem diferente de ser homem. E como muita gente, também foi obrigado a virar homem ainda quando era menino.

Mesmo depois de várias horas, ele continuava sentado em frente à janela daquele quarto escuro, tentando desvendar o que fazia aquele monte de água ser tão especial. E resulta que, na verdade, não tinha nada de especial. Era apenas a chuva caindo e cobrindo tudo com aquele cheiro característico de vida. Um possível recomeço. Mas ele nunca tinha parado para acompanhar o ritmo da chuva pingando no chão, e isso fez com que a sua percepção sofresse um grande impacto. Naquele instante, ele acabava de perceber que nunca havia dado importância para a água que saía das nuvens. Parecia algo bobo aos olhos nus, mas não era. Ele enfim percebeu que, depois de reparar em algo que sempre esteve ao seu lado, durante tantos dias de um ano, poderia começar a reparar em si próprio.

Depois de tanto tempo observando o clima que seguia do outro lado da janela, ele tomou coragem, abriu bem os olhos e levantou o vidro que o separava daquele sentimento de vida contínua, que seguia se renovando desde o ponto mais alto do céu. Feito isso, abriu o mais largo sorriso. Sentiu a satisfação. E a partir daquele dia, nunca mais se sentiu sozinho. Nunca mais como naquele dia.

quarta-feira, 16 de fevereiro de 2011

Carta para um menino da paz

5 de março de 1994

Chiapas, sudeste mexicano.

Miguel:


Sua mãe me entregou sua carta junto com a foto em que você está com o seu cachorro. Aproveito que sua mãe está voltando para sua terra para lhe escrever estas linhas, que, talvez, não consigas entender ainda. Tenho certeza que algum dia entenderás que é possível que existam homens e mulheres como nós, sem rosto e sem nome, que deixam tudo para trás. Deixam até mesmo a vida, para que outros (meninos como você e que não são como você) possam levantar-se cada manhã sem ter que calar as palavras e sem máscaras para enfrentar o mundo. Quando este dia chegar, nós, os sem rosto e sem nome, poderemos descansar, enfim, embaixo da terra. Bem mortos, isso sim, mas felizes.

Já quase morre o dia, obscuro quando se veste a noite e vem nascer o outro dia, com seu véu negro. Já quase morre o dia nos braços noturnos dos grilos e então vem essa idéia de escrever-te para te dizer algo que vem disso chamado “profissionais da violência”, que tanto nos têm acusado. E resulta que sim, somos profissionais. Mas nossa profissão é a esperança. Um belo dia nós decidimos nos fazer soldados para que um dia não sejam necessários os soldados. Ou seja, escolhemos uma profissão suicida, porque é uma profissão cujo objetivo é desaparecer: soldados que são soldados para que um dia ninguém mais tenha de ser soldado. Claro, não? E então resulta que estes soldados que querem deixar de ser soldados, nós mesmos, temos algo que os livros e discursos chamam de “patriotismo”. Porque isso que chamamos de pátria não é uma idéia que vaga entre letras e livros, e sim um grande corpo de carne e osso, de dor e sofrimento, de pena, de esperança de que tudo mude. E a pátria que queremos há de nascer também de nossos erros e tropeços. De nossos velhos e quebrados corpos haverá de levantar-se um mundo novo. O veremos? Importa se o veremos? Creio que já não importa tanto como o saber da ciência exata que nascerá e que em um longo e doloroso tempo da história, algo colocamos: vida, corpo e alma. Amor e dor, que não apenas rimam, mas também são irmãs e junto marcham. Por isso somos soldados que querem deixar de ser soldados. Mas resulta que, para que já não sejam necessários os soldados, há que fazer-se soldado e prescrever uma discreta quantidade de chumbo, chumbo quente escrito liberdade e justiça para todos, não para um ou para alguns, e sim para todos, os mortos de antes e amanhã, os vivos de hoje e sempre, todos que chamamos povo e pátria, os sem nada, os perdedores de sempre antes de amanhã, os sem nome, os sem rosto.

E ser um soldado que quer que já não sejam necessários os soldados é muito simples, basta responder com firmeza ao pedacinho de esperança que depositam em cada um de nós, os que nada tem, os que tudo terão. Por eles e pelos que foram ficando no caminho, por uma razão ou outra, todas injustas. Por eles tratar de vez de mudar e ser melhor a cada dia, cada tarde, cada noite de chuva e grilos. Acumular ódio e amor com paciência. Cultivar a feroz árvore do ódio ao opressor com o amor que combate e liberta. Cultivar a poderosa árvore do amor que é o vento que limpa e cura, não o amor pequeno e egoísta, o grande sim, o que melhora e engrandece. Cultivar entre nós a árvore do ódio e do amor, a árvore do dever. E neste cultivo colocar a vida inteira, corpo e alma, esperança. Crescer, pois, crescer e crescer a si próprio passo a passo. E embaixo de estrelas vermelhas, nada temer.

O revolucionário ama a vida sem temer a morte, e busca que a vida seja digna para todos, e se para isto deve pagar com sua vida, o fará sem pestanejar.

Receba o meu melhor abraço e esta dor que sempre será esperança.

Saúde, Miguel. Desde as montanhas do sudeste mexicano,

Subcomandante insurgente Marcos.


Obs: Aqui nós vivíamos piores do que os cachorros. Tivemos que escolher: viver como animais ou morrer como homens dignos. A dignidade, Miguel, é o único que não se deve perder nunca. Nunca...

terça-feira, 1 de fevereiro de 2011

Triste caminho

Naquelas tardes frias e ranzinzas, o desespero a consumia. Era como um medo que não encontrava saída daquele corpo tão bonito. Os olhos, brilhosos e profundos, não entravam em sintonia com as mãos ariscas. A imagem que vendia para todos os outros olhos interessados, se desfazia em pequenas rimas. Não eram todos que a notavam tão triste e com pouca vida. Na verdade, eram poucos. Um único pouco.

Ela não queria pedir ajuda, muito menos aceitá-la. Não entendia que isso a tornava cada vez mais esquecida dentro de si própria, fazendo com que acabasse por se abandonar completamente. Tudo bem, é sabido que não é fácil mexer em alguns pontos. Mas é muito pior se deixar morrer aos poucos. Ponto a ponto.

Aquela menina reunia tanta beleza, que era uma tarefa impossível não querer fazer parte de sua vida. E não falo apenas da beleza óbvia que faz todos arregalarem os olhos, falo de algo mais complexo que isso. Algo que chega a beirar o lírico. Mas, infelizmente, ela não entendia que todos esses elogios não serviriam de nada, já que ela nunca aceitou remexer nas peças que a consumiam. E, pior ainda, nunca aceitou o fato de ser tão bonita para a vida.