quarta-feira, 16 de fevereiro de 2011

Carta para um menino da paz

5 de março de 1994

Chiapas, sudeste mexicano.

Miguel:


Sua mãe me entregou sua carta junto com a foto em que você está com o seu cachorro. Aproveito que sua mãe está voltando para sua terra para lhe escrever estas linhas, que, talvez, não consigas entender ainda. Tenho certeza que algum dia entenderás que é possível que existam homens e mulheres como nós, sem rosto e sem nome, que deixam tudo para trás. Deixam até mesmo a vida, para que outros (meninos como você e que não são como você) possam levantar-se cada manhã sem ter que calar as palavras e sem máscaras para enfrentar o mundo. Quando este dia chegar, nós, os sem rosto e sem nome, poderemos descansar, enfim, embaixo da terra. Bem mortos, isso sim, mas felizes.

Já quase morre o dia, obscuro quando se veste a noite e vem nascer o outro dia, com seu véu negro. Já quase morre o dia nos braços noturnos dos grilos e então vem essa idéia de escrever-te para te dizer algo que vem disso chamado “profissionais da violência”, que tanto nos têm acusado. E resulta que sim, somos profissionais. Mas nossa profissão é a esperança. Um belo dia nós decidimos nos fazer soldados para que um dia não sejam necessários os soldados. Ou seja, escolhemos uma profissão suicida, porque é uma profissão cujo objetivo é desaparecer: soldados que são soldados para que um dia ninguém mais tenha de ser soldado. Claro, não? E então resulta que estes soldados que querem deixar de ser soldados, nós mesmos, temos algo que os livros e discursos chamam de “patriotismo”. Porque isso que chamamos de pátria não é uma idéia que vaga entre letras e livros, e sim um grande corpo de carne e osso, de dor e sofrimento, de pena, de esperança de que tudo mude. E a pátria que queremos há de nascer também de nossos erros e tropeços. De nossos velhos e quebrados corpos haverá de levantar-se um mundo novo. O veremos? Importa se o veremos? Creio que já não importa tanto como o saber da ciência exata que nascerá e que em um longo e doloroso tempo da história, algo colocamos: vida, corpo e alma. Amor e dor, que não apenas rimam, mas também são irmãs e junto marcham. Por isso somos soldados que querem deixar de ser soldados. Mas resulta que, para que já não sejam necessários os soldados, há que fazer-se soldado e prescrever uma discreta quantidade de chumbo, chumbo quente escrito liberdade e justiça para todos, não para um ou para alguns, e sim para todos, os mortos de antes e amanhã, os vivos de hoje e sempre, todos que chamamos povo e pátria, os sem nada, os perdedores de sempre antes de amanhã, os sem nome, os sem rosto.

E ser um soldado que quer que já não sejam necessários os soldados é muito simples, basta responder com firmeza ao pedacinho de esperança que depositam em cada um de nós, os que nada tem, os que tudo terão. Por eles e pelos que foram ficando no caminho, por uma razão ou outra, todas injustas. Por eles tratar de vez de mudar e ser melhor a cada dia, cada tarde, cada noite de chuva e grilos. Acumular ódio e amor com paciência. Cultivar a feroz árvore do ódio ao opressor com o amor que combate e liberta. Cultivar a poderosa árvore do amor que é o vento que limpa e cura, não o amor pequeno e egoísta, o grande sim, o que melhora e engrandece. Cultivar entre nós a árvore do ódio e do amor, a árvore do dever. E neste cultivo colocar a vida inteira, corpo e alma, esperança. Crescer, pois, crescer e crescer a si próprio passo a passo. E embaixo de estrelas vermelhas, nada temer.

O revolucionário ama a vida sem temer a morte, e busca que a vida seja digna para todos, e se para isto deve pagar com sua vida, o fará sem pestanejar.

Receba o meu melhor abraço e esta dor que sempre será esperança.

Saúde, Miguel. Desde as montanhas do sudeste mexicano,

Subcomandante insurgente Marcos.


Obs: Aqui nós vivíamos piores do que os cachorros. Tivemos que escolher: viver como animais ou morrer como homens dignos. A dignidade, Miguel, é o único que não se deve perder nunca. Nunca...

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